O TRAUMA E SUAS DUAS PRINCIPAIS ABORDAGENS NA CLINICA

Este tema já foi muito discutido e se configura como uma das bases da psicanálise. É muito famosa a afirmação de Freud “Minhas histéricas mentem”  e o abandono de Freud à teoria da sedução. Nesta teoria Freud acreditava que a histeria se fundamentava em um trauma real na infância, geralmente de ordem sexual e na maioria das vezes configurado por um assédio sexual por parte do pai. A partir deste momento Freud percebeu que esta ideia na maioria das vezes era fruto de fantasia, mas preservava seu caráter nocivo e gerador da neurose. Inaugura-se então a ideia de que, para o aparelho psíquico não importa se o fato ocorreu ou não, o que importa é o registro que foi impresso no inconsciente. Isto pode ser confirmado em outra famosa afirmação de Freud “A fantasia tem força de realidade”.
            A partir deste momento a psicanálise firma suas bases na questão intrapsíquica, pois a causa e o tratamento da neurose poderia ser feito apenas com o manejo deste conteúdo interno que ao ser elaborado e vivenciado em transferência perderia sua função como sintoma e contribuiria para reduzir a libido investida neste conflito.
            Outro elemento que contribuiu muito para a visão psicanalítica do trauma foi o postulado sobre o masoquismo, tanto na primeira fase da teoria baseada no princípio do prazer em que ele era visto como um sadismo voltado para sí, quanto na segunda fase onde passou a ser visto como um gozo sob a primazia da pulsão de morte. De qualquer forma a dinâmica masoquista representaria uma condição eminentemente interna.
            Até hoje a interpretação clinica psicanalítica mais comum diante da apresentação de um conteúdo real de abuso é considerar a existência de um prazer obtido com o evento real e sua posterior repressão. Nesta interpretação o trauma não foi nocivo pelo ato do abuso sexual ou moral, mas sim numa segunda fase quando este fato seria trazido à consciência, no entanto, sua existência consciente seria intolerável, dando origem a um complexo reprimido que seguiria todas as regras da neurótica freudiana traduzindo-se em sintomas a serem elaborados transferencialmente.
            Neste trabalho pretendo trazer à discussão duas novas concepções sobre o trauma, a concepção de Sandor Ferenczi, na qual o trauma se constitui a partir do trauma real seguido de um desmentido, que substitui a reparação e também pela concepção da Alice Miller, que será discutida no próximo capítulo, na qual há atuação nociva por parte da mãe ou cuidador que ao participar de uma relação com um indivíduo mais frágil repete uma dinâmica anterior.
Ferenczi ressaltou que os fatos traumáticos são reais e existem de forma relativamente independente da realidade psíquica. São acontecimentos concretos provocados por um agente externo, que neste trabalho chamamos de assediador. É importante ressaltar que, do ponto de vista dinâmico, o conflito do qual falamos ocorre entre o ego e o objeto externo, ou seja, não se trataria de um conflito intrapsíquico, mas provoca sim uma mudança autoplástica no ego e aí sim, uma dinâmica resultante patológica.
Do ponto de vista econômico, o trauma mobiliza grande quantidade de libido que é retirada das atividades do quotidiano para sustentar esta repressão, esta proposição coincide com a visão Freudiana, já do ponto de vista topográfico o trauma é efetivado pelo desmentido do adulto, que deveria ser sua referência de acolhimento e proteção. Este desmentido coloca em cheque a capacidade de percepção e defesa da criança e segundo Ferenczi gera uma cisão do ego. O desmentido é quando o adulto nega para a criança que um ato agressivo ou de abuso sexual ocorreu, dizendo que foi sua imaginação ou que ela não sabe o que está falando.
Esta mudança na etiologia do trauma com ênfase nas relações primarias de objeto trouxe muitas inovações inclusive na terapia destes pacientes, trataremos deste tema em trabalho posterior.
            As idéias de Ferenczi também contribuíram muito para abordar a questão de que, as pessoas que desenvolvem dinâmicas agressivas como os abusadores sexuais, pessoas com comportamento anti-social ou até mesmo os assediadores morais que nos referimos no capitulo anterior, geralmente tiveram infâncias onde existiram relações primordiais traumáticas.
            Ferenczi nos mostra algumas dinâmicas traumatizantes, sempre envolvendo um adulto e fatos reais, como o amor forçado, as medidas punitivas insuportáveis e o terrorismo do sofrimento. Conforme Kahtuni & Sanches (2009), o amor forçado que é quando a criança sofre experiências de sedução, homo ou heterossexual e geralmente incestuosas por parte de adultos significativos com os quais ela mantém relação de dependência e deveriam ser de confiança dela, já as medidas punitivas insuportáveis equivalem aos castigos físicos infligidos às crianças pelos adultos e finalmente o terrorismo do sofrimento é o abuso psicológico que o adulto provoca ao inverter o papel de cuidador, transformando a criança em um auxiliar para tarefas domésticas e também para desempenhar funções psíquicas de adulto como proteger, tranquilizar, servir como confidente, intermediar conflitos com adultos etc.
            O desmentido é o acontecimento chave para o Trauma, pois provoca uma distorção na própria percepção da realidade da criança. Ele provoca uma desconfirmação de uma percepção real, pelo adulto que é referência de cuidado para a criança. Segundo Ferenczi, isto faz com que a violência seja inscrita apenas em uma parte clivada do ego.
Na nossa concepção, incluindo a perspectiva somática, este sentir traumático é inscrito apenas no corpo e estaria fora do aparelho psíquico. Trataremos deste assunto no capitulo sobre a Alienação Perceptiva e a Somatização.
            A criança vitima da agressão, em busca da confirmação de seu sofrimento, recebe em troca um discurso e um comportamento que faz a própria criança duvidar se o ato realmente aconteceu, provocando um padrão distorcido de contato com seus próprios sentimentos subsequentes. Outra consequência do desmentido é a identificação com o agressor, reforçada pelo sentimento de culpa fruto da própria negação de que o fato ocorreu. Como exemplo, segue um diálogo típico entre a mãe e a filha que foi abusada pelo avô:  “Filha, não aconteceu nada, você é que está imaginando coisas, pare com isto ou você vai prejudicar a mamãe e o seu avô que te amam muito. Você tem de tudo, não pode reclamar! Você gosta do seu avô, não gosta? Ele até te trouxe um presente e vai te levar para o circo.”.
             Fica evidente que, em nossa concepção de trauma, que sua definição só pode ser dada na relação, ou seja, na existência de um Outro traumatizador. Esta impactante idéia de Ferenczi, foi desenvolvida para alertar os psicanalistas que seu posicionamento diante dos relatos do paciente, pode repetir o desmentido original e provocar o que ele chamou de retraumatismo ou conduta teratogênica. Em resumo, o terapeuta pode retraumatizar se repetir a negação do trauma real, mesmo que em nome de uma teoria intrapsíquica.
            Para finalizar esta exposição, devemos citar os dois mecanismos pós-traumáticos que entram em ação com a cisão do ego, a regressão e a progressão traumáticas.
            A progressão traumática pode ser descrita como um amadurecimento precoce do sujeito, comparada ao amadurecimento precoce de uma fruta bichada. Estes pacientes desenvolveram precocemente uma capacidade excepcional de raciocínio lógico, habilidades e racionalização que os torna objeto de admiração, mas no entanto esconde uma outra parte cindida e regredida do ego. Esta outra parte do ego, que busca viver a inocência da situação pré-traumática, eclode muitas vezes na terapia e é confundida com resistência ou atuação. Ferenczi aponta a necessidade de que a terapia funcione também como uma estufa psíquica, que permita ao paciente expor e desenvolver esta frágil parte do seu ego e permita uma progressiva integração.

Nossa visão do trauma não é contraditória à visão Freudiana, que analisa o trauma dentro do aparelho psíquico do traumatizado, como mantenedor de uma neurótica, nós apenas adicionamos uma importante variável que é a influência de uma relação traumatizante real na gênese do trauma. Acrescentamos também que o trauma se constitui como tal, principalmente por uma falta de reparação, associada a uma negação do evento traumático pela pessoa usada como referência pela criança, provocando uma cisão do ego, que necessita de um cuidado especial em seu manejo, evitando o retraumatismo terapêutico. Na nossa concepção as relações afetivas e de amizade atuais das pessoas traumatizada são muito influenciadas por esta dinâmica originária infantil e alimentam muito as situações de assédio moral, ou seja, a pessoa escolhe assediadores como amigos e companheiros. Faremos a ligação entre estes dois temas posteriormente.(Prado, A.F – A Alienação Perceptiva : O Assédio Moral Infantil e sua relação com os processos de somatização, Cap 2 – Monografia Especialização em Psicossomática Sedes Sapientiae)

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